terça-feira, julho 10, 2012

Julho- Uma Entrevista Com Um Ursinho


Ursinho: No Rio de Janeiro, no Bairro da Lapa há uma loja de Carnaval . É uma daquelas lojas  de segunda mão que alberga restos da grande festa, desde o fato de plumas ao vestido da princesa drag até este ursinho. Este ursinho amarelo. Esta figura animada com uma língua vermelha, um nariz de bola preta, e uns olhos azuis a roçar o triste.  É um ursinho em segunda mão, fofo, triste, sujo com o preço de 7 reais, e a precisar de uns pontos no nariz, nas pernas e nos braços. Na altura, hesitei, quer dizer hesitamos. Eu e o Gustavo de volta à rua, pensamos para nós, “ah! antes de viajar passamos por lá e levamos o ursinho”. No caminho, começamos a imaginar o que seria animar esse ursinho, o que seria pô-lo a falar, o que seria entrevistá-lo. Mais à frente ainda nessa caminhada, agora no centro da cidade, eu assumia o papel de entrevistador, e o Gustavo o de entrevistado, logo o de ursinho. Eu entretanto deixei a cidade, e o Gustavo poucos dias depois faria o mesmo. Antes de se meter no avião, mesmo no dia de partida, ele voltou à loja e trouxe consigo o ursinho.

Entrevista: Lembro-me de ter feito muitas entrevistas tanto na vida, como em situações laboratoriais ou de palco. Em pesquisa para a criação de “Para onde vai a luz quando se apaga?” (Culturgest, Maio 2008) de João  Fiadeiro, vi-me envolvido ou apanhado num jogo de entrevista em que eu era o entrevistador, e o que o entrevistado só podia responder sim a tudo. Atuava como máquina de fazer perguntas, uma a seguir à outra, deixando pouco espaço para o outro responder que sim e justificar-se.  As perguntas aqui respiravam a respostas que eram insinuações, que eram provocações, que eram adivinhas ou que eram mero jogo de associação com o arquétipo que os outros (os entrevistados) carregavam. Peguei nessa situação e desenvolvi-a em muitos laboratórios a que chamei de “agarrado a nada com tudo o que tenho”. Esse jogo serviu depois de base  para um jogo de composição escrita, e tornou-se meio de mover da realidade (daquilo que se sabe) para uma ficção (híper-realista, aumentada, exagerada ou em demasia). Os atores e participantes viam-se em mãos com informações que os empurravam a “ser” outra coisa, e a experimentar não uma caricatura de si mesmos, mas um “aumento de si para dentro”. O arquétipo virava persona incompleta, não global e necessitaria sempre de outras informações e ou experiências para virar qualquer coisa, ou para virar um “alguém ficcional.”

Faço desde 2010, “Drifting-Em Deriva”, um projeto contextual em conversação com o Gustavo. É um projeto viajante que se inspira em Ersília, uma das cidades invisíveis de Calvino. Ersília era aquela cidade onde as relações e as suas diferentes tipologias se tornam visíveis através de fios de diferentes cores  a ligarem janelas com janelas, portas com portas e casas com casas. Para nós, tornou-se pretexto tecermos o nosso encontro em laboratório, para encontrarmos novos lugares e para encontrarmos “o outro” interessado na experiência da deriva. Foi logo ao primeiro episódio, na cidade do Rio de Janeiro, em conjunto com a Casa França-Brasil, que encontramos a Marina. A Marina na altura tinha 19 anos, habitava o Bairro Vidigal e trazia na sua mochila, entre outras coisas, um livro da brasileira Stela do Patrocínio. A última parte desse livro era uma auto-entrevista em que Stela falava sobre como tinha chegado aonde tinha chegado e falava sobre o que era e como era viver ali. Lembro-me que nesse encontro com a Marina de fazermos os três  as vezes do entrevistador e da entrevistada e lermos a coisa do princípio ao fim. Depois, continuamos o projeto  da deriva em Taipei, no Bamboo Curtain Studio. Aí, essa entrevista viria a ser adaptada ao contexto (as perguntas eram ligeiramente reformuladas e direcionadas à experiência de habitar/viver nesta localidade) e aplicada numa corrente de vídeo onde o entrevistador nunca conhecia o entrevistado e o entrevistado tornava-se sempre o entrevistador na entrevista seguinte.
Ainda “Em Deriva”, mas agora em Lisboa, em Janeiro de 2012, decidimos que íamos experimentar dar forma a  uma cena de entrevista, e que utilizaríamos o delírio daquela caminhada pelo Rio de Janeiro para tentar ensaiar uma cena que se chamasse a “Entrevista com o Ursinho”. Em residência no espaço Negócio da ZDB, o Gustavo sugeriu que esse ursinho aparecesse do fundo do fumo como se sempre lá estivesse, ou como se tivesse aparecido assim de repente do nevoeiro, esse lugar onde nos habituamos a imaginar ver desaparecer Dom Sebastião. No encontro com o grupo de trabalho de 10 participantes, começamos por fazer um jogo de perguntas em que  durante uma hora só se fala em perguntas, sentados em círculo e sempre em cada pergunta mencionando um nome de um ou mais dos outros membros do grupo e nome da cidade. Cada pergunta era uma equação para uma reflexão sem resposta, e para múltiplos risos, desconfianças e imaginações uns sobre os outros electrificadas.  Cada um escrevia as perguntas que lhes parecessem importantes e que lhes pudesse eventualmente interessar a resposta. Foi assim que entregamos à Vânia Rovisco o papel de entrevistadora (com um extenso manancial de perguntas) e ao Eduardo Guerra Frazão o papel de Ursinho. A cena durava uns 5 minutos e era precedida por um percurso da Vânia Rovisco que constava em –“ sobe a grade da plateia desce as escadas, vai até ao público, atravessa para o outro lado, volta-te  e vai em direção à grade, sobe as escadas, e salta/desce até desapareceres, volta ao início e repete o percurso  5 ou 6 vezes.” Era no meio desse percurso que surgia o ursinho das fumarolas, e dessa aparição uma exclamação “Oh! Um Ursinho!!!!!”. Desse encontro, iniciava-se então uma cena de entrevista. A entrevistadora “vomitava” perguntas, e o ursinho lá respondia ao que podia. No desenrolar da cena, a entrevistadora servia-se do ursinho como oráculo e como resposta a tudo, variando com perguntas de caráter pessoal ou outras que evidenciassem inquietações sobre o estado da cidade, da nação e do mundo. Com, “ó ursinho, tu achas que eu vou morrer em Lisboa?”, a entrevistadora tinha um ataque de raiva com o ursinho, estrangulava-o, e fazia saltar a sua cabeça.  Ela depois, saía em histeria e revelava odiar e ter sempre odiado ursinhos. O Ursinho recuperava o fôlego e perguntava ao público: “Vocês têm mais alguma pergunta?”

Julho: Decidi começar neste mês, o sétimo do ano, pleno Verão em Portugal, um projeto de 12 meses. Cada mês pressupõe um processo e um produto provisório e existe como capítulo num conjunto de experiências que se influenciam e contaminam ao testar a experimentação de ideias que originam objetos performativos de pequeno formato. Em resposta, a uma convocatória para residências artísticas dos Maus Hábitos, e o seu projeto ON-OFF-Laboratório de Criatividade Urbana para a Capital Europeia da Cultura, Guimarães 2012 decidi que Julho levava um subtítulo –“ Entrevista com Um Ursinho”. Essa decisão esconde um jogo de encontro e experiência com os habitantes dessa cidade através de um processo de escrita e performance diária de entrevista a vários habitantes locais da cidade  e de criação de uma vida ficcional do ursinho na cidade. Por outras palavras, em Julho, atiro-me ao desafio de entrevistar o Ursinho ( vestido por muitos mas sempre o mesmo) e de ser o Ursinho. Julho desmonta a "entrevista" como contentor, brinca com o lema "um por todos e todos por um", e entrega-me ao absurdo de falar com várias pessoas, como se falasse com uma cidade- Guimarães.
António Pedro Lopes


1 comentário:

Heber Stalin disse...

Bom, muito bom. Obrigado!