Ursinho: No Rio de Janeiro, no Bairro da Lapa há uma loja de
Carnaval . É uma daquelas lojas de
segunda mão que alberga restos da grande festa, desde o fato de plumas ao
vestido da princesa drag até este
ursinho. Este ursinho amarelo. Esta figura animada com uma língua vermelha, um
nariz de bola preta, e uns olhos azuis a roçar o triste. É um ursinho em segunda mão, fofo, triste,
sujo com o preço de 7 reais, e a precisar de uns pontos no nariz, nas pernas e
nos braços. Na altura, hesitei, quer dizer hesitamos. Eu e o Gustavo de volta à
rua, pensamos para nós, “ah! antes de viajar passamos por lá e levamos o
ursinho”. No caminho, começamos a imaginar o que seria animar esse ursinho, o
que seria pô-lo a falar, o que seria entrevistá-lo. Mais à frente ainda nessa
caminhada, agora no centro da cidade, eu assumia o papel de entrevistador, e o
Gustavo o de entrevistado, logo o de ursinho. Eu entretanto deixei a cidade, e
o Gustavo poucos dias depois faria o mesmo. Antes de se meter no avião, mesmo
no dia de partida, ele voltou à loja e trouxe consigo o ursinho.
Entrevista: Lembro-me de ter feito muitas entrevistas tanto
na vida, como em situações laboratoriais ou de palco. Em pesquisa para a
criação de “Para onde vai a luz quando se apaga?” (Culturgest, Maio 2008) de
João Fiadeiro, vi-me envolvido ou
apanhado num jogo de entrevista em que eu era o entrevistador, e o que o
entrevistado só podia responder sim a tudo. Atuava como máquina de fazer
perguntas, uma a seguir à outra, deixando pouco espaço para o outro responder
que sim e justificar-se. As perguntas
aqui respiravam a respostas que eram insinuações, que eram provocações, que
eram adivinhas ou que eram mero jogo de associação com o arquétipo que os
outros (os entrevistados) carregavam. Peguei nessa situação e desenvolvi-a em
muitos laboratórios a que chamei de “agarrado a nada com tudo o que tenho”.
Esse jogo serviu depois de base para um
jogo de composição escrita, e tornou-se meio de mover da realidade (daquilo que
se sabe) para uma ficção (híper-realista, aumentada, exagerada ou em demasia).
Os atores e participantes viam-se em mãos com informações que os empurravam a
“ser” outra coisa, e a experimentar não uma caricatura de si mesmos, mas um
“aumento de si para dentro”. O arquétipo virava persona incompleta, não global
e necessitaria sempre de outras informações e ou experiências para virar
qualquer coisa, ou para virar um “alguém ficcional.”
Faço desde 2010, “Drifting-Em Deriva”, um projeto contextual
em conversação com o Gustavo. É um projeto viajante que se inspira em Ersília,
uma das cidades invisíveis de Calvino. Ersília era aquela cidade onde as
relações e as suas diferentes tipologias se tornam visíveis através de fios de
diferentes cores a ligarem janelas com
janelas, portas com portas e casas com casas. Para nós, tornou-se pretexto tecermos
o nosso encontro em laboratório, para encontrarmos novos lugares e para
encontrarmos “o outro” interessado na experiência da deriva. Foi logo ao
primeiro episódio, na cidade do Rio de Janeiro, em conjunto com a Casa
França-Brasil, que encontramos a Marina. A Marina na altura tinha 19 anos,
habitava o Bairro Vidigal e trazia na sua mochila, entre outras coisas, um
livro da brasileira Stela do Patrocínio. A última parte desse livro era uma
auto-entrevista em que Stela falava sobre como tinha chegado aonde tinha
chegado e falava sobre o que era e como era viver ali. Lembro-me que nesse
encontro com a Marina de fazermos os três
as vezes do entrevistador e da entrevistada e lermos a coisa do
princípio ao fim. Depois, continuamos o projeto
da deriva em Taipei, no Bamboo Curtain Studio. Aí, essa entrevista viria
a ser adaptada ao contexto (as perguntas eram ligeiramente reformuladas e
direcionadas à experiência de habitar/viver nesta localidade) e aplicada numa
corrente de vídeo onde o entrevistador nunca conhecia o entrevistado e o
entrevistado tornava-se sempre o entrevistador na entrevista seguinte.
Ainda “Em Deriva”, mas agora em Lisboa, em Janeiro de 2012,
decidimos que íamos experimentar dar forma a uma cena de entrevista, e que utilizaríamos o
delírio daquela caminhada pelo Rio de Janeiro para tentar ensaiar uma cena que
se chamasse a “Entrevista com o Ursinho”. Em residência no espaço Negócio da
ZDB, o Gustavo sugeriu que esse ursinho aparecesse do fundo do fumo como se
sempre lá estivesse, ou como se tivesse aparecido assim de repente do nevoeiro,
esse lugar onde nos habituamos a imaginar ver desaparecer Dom Sebastião. No
encontro com o grupo de trabalho de 10 participantes, começamos por fazer um
jogo de perguntas em que durante uma
hora só se fala em perguntas, sentados em círculo e sempre em cada pergunta
mencionando um nome de um ou mais dos outros membros do grupo e nome da cidade.
Cada pergunta era uma equação para uma reflexão sem resposta, e para múltiplos
risos, desconfianças e imaginações uns sobre os outros electrificadas. Cada um escrevia as perguntas que lhes
parecessem importantes e que lhes pudesse eventualmente interessar a resposta.
Foi assim que entregamos à Vânia Rovisco o papel de entrevistadora (com um
extenso manancial de perguntas) e ao Eduardo Guerra Frazão o papel de Ursinho.
A cena durava uns 5 minutos e era precedida por um percurso da Vânia Rovisco
que constava em –“ sobe a grade da plateia desce as escadas, vai até ao
público, atravessa para o outro lado, volta-te
e vai em direção à grade, sobe as escadas, e salta/desce até
desapareceres, volta ao início e repete o percurso 5 ou 6 vezes.” Era no meio desse percurso que
surgia o ursinho das fumarolas, e dessa aparição uma exclamação “Oh! Um Ursinho!!!!!”.
Desse encontro, iniciava-se então uma cena de entrevista. A entrevistadora
“vomitava” perguntas, e o ursinho lá respondia ao que podia. No desenrolar da
cena, a entrevistadora servia-se do ursinho como oráculo e como resposta a tudo,
variando com perguntas de caráter pessoal ou outras que evidenciassem
inquietações sobre o estado da cidade, da nação e do mundo. Com, “ó ursinho, tu
achas que eu vou morrer em Lisboa?”, a entrevistadora tinha um ataque de raiva
com o ursinho, estrangulava-o, e fazia saltar a sua cabeça. Ela depois, saía em histeria e revelava odiar
e ter sempre odiado ursinhos. O Ursinho recuperava o fôlego e perguntava ao
público: “Vocês têm mais alguma pergunta?”
Julho: Decidi começar neste mês, o sétimo do
ano, pleno Verão em Portugal, um projeto de 12 meses. Cada mês pressupõe um
processo e um produto provisório e existe como capítulo num conjunto de
experiências que se influenciam e contaminam ao testar a experimentação de
ideias que originam objetos performativos de pequeno formato. Em resposta, a
uma convocatória para residências artísticas dos Maus Hábitos, e o seu projeto
ON-OFF-Laboratório de Criatividade Urbana para a Capital Europeia da Cultura,
Guimarães 2012 decidi que Julho levava um subtítulo –“ Entrevista com Um
Ursinho”. Essa decisão esconde um jogo de encontro e experiência
com os habitantes dessa cidade através de um processo de escrita e performance
diária de entrevista a vários habitantes locais da cidade e de criação de uma vida ficcional do ursinho
na cidade. Por outras palavras, em Julho, atiro-me ao desafio de entrevistar o
Ursinho ( vestido por muitos mas sempre o mesmo) e de ser o Ursinho. Julho
desmonta a "entrevista" como contentor, brinca com o lema "um
por todos e todos por um", e entrega-me ao absurdo de falar com várias
pessoas, como se falasse com uma cidade- Guimarães.
António Pedro Lopes
1 comentário:
Bom, muito bom. Obrigado!
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